:: quarta-feira, maio 19, 2004 ::

Semana 6
Tema: A poesia lírica de Camões: medida velha e medida nova


Poesia lírica: expressão artística das vivências emotivas de um eu manifesto ou implícito. Ao contrário da poesia épica, que se desenvolve na base da sucessão das ações e das intrigas, a poesia lírica busca exprimir a duração e os contornos de um processo emotivo.

Dados biográficos
Luís Vaz de Camões nasceu por volta de 1525; o local de nascimento também é impreciso, podendo ser Lisboa, Coimbra ou Santarém.
* 1547: parte para Ceuta (Marrocos), alistado como soldado, onde, em batalhas com os mouros, fica cego do olho direito.
* 1550: retorna à Corte portuguesa.
Apelidos: Trinca-fortes / Diabo Zarolho
* 1552: vai preso por ferir um funcionário do paço imperial, em uma briga. No ano seguinte, como aventureiro, toma parte em várias expedições para as colônias portuguesas. Refaz, nesse período, a rota de Vasco da Gama às Índias, que, alguns anos mais tarde, se converterá na ação central de Os Lusíadas.
* 1555: viagem a Goa
* 1558: Chegada em Macau, na China, para ocupar o cargo de Provedor-Mor de bens de defuntos e ausentes. Acusado de irregularidades, volta preso a Goa, para justificar-se. Durante a viagem, em 1559, naufraga às margens do Rio Mekong, no Camboja. Desse trágico episódio, surge a “lenda” envolvendo Os Lusíadas e a morte da amante chinesa de Camões, Dinamene. De fato, a moça morreu, mas o que não se sabe é se Camões salvou os rascunhos de sua obra em detrimento da jovem amada.
* 1567 – 1569: exílio em Moçambique;
* 1569: regressa, muito pobre, a Lisboa.
* 1572: publica Os Lusíadas.
* 1580: morre, após o desastre militar de Alcácer Quibir, em 1578, que fazia antever a anexação de Portugal aos domínios da Espanha. Sobre a morte que se aproximava, disse Camões a D. Francisco de Almeida: “Enfim, acabarei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado à minha pátria, que não me contentei em morrer nela, mas com ela”. Em 10 de junho de 1580, morreu, então, Camões, primeiro dos grandes poetas da Língua Portuguesa. Foi sepultado na Igreja de Santana, numa vala comum. Assim, os restos mortais que se encontram nos “Jerônimos”, para onde foram transferidos em 1880, têm apenas caráter simbólico.



O BÁSICO SOBRE LÍRICA CAMONIANA
* Platonismo amoroso;
* mulher idealizada + mulher real;
* Medida velha + medida nova;
* Antecipação barroca: antíteses e paradoxos;
* Estrutura silogística nos sonetos: discurso objetivo sobre os sentimentos e as questões filosóficas;
* Principais temas: o Amor, o Desconcerto do mundo, a mutabilidade das coisas;
* Conflito violento entre o ser e o dever ser.

As redondilhas de Camões – A medida velha
Poesia à maneira do Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende, composta de redondilhas maiores (7 sílabas) e menores (5). A temática destes versos é leve, brincalhona, madrigalesca; a situação amorosa é tratada de acordo com os parâmetros do amor cortês medieval; situações individualizadas. Destinava-se à recitação na Corte e revelaram a habilidade formal do poeta, talentoso em criar imagens, trocadilhos e ambigüidades em sua linguagem poética.

Texto I: “Perdigão perdeu a pena”

Mote alheio
Perdigão perdeu a pena
Não há mal que lhe não venha

Voltas
Perdigão, que o pensamento
Subiu a um alto lugar,
Perde a pena do voar,
Ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
Asas com que se sustenha:
Não há mal que lhe não venha...

Quis voar a uma alta torre,
Mas achou-se desasado,
E, vendo-se depenado,
De puro penado morre...
Se a queixumes se socorre,
Lança no fogo mais lenha:
Não há mal que lhe não venha!

Comentários: é notável neste vilancete o trabalho com a polissemia da palavra “pena” (jogo de palavras). Podemos destacar 3 significados que são trabalhados no poema e interligados na construção do sentido.
* pluma – Perdigão (animal)
* instrumento de escrita – perdigão (analogia com o poeta)
* piedade, compaixão, dó - sentimento despertado no “leitor”, ao saber da perda da pena (pluma) do Perdigão (animal), que, por conseqüência, perde a possibilidade de voar. Por analogia, está é a mesma coisa que acontece com o poeta. A pena (instrumento de escrita) simboliza o talento, a inspiração que, perdida, impossibilita o poeta de realizar sua atividade básica, a poesia.


A lírica clássica – A medida nova: as formas e os temas da lírica clássica

Influências: Petrarca e Dante Alighieri
Formas: versos decassílabos, aplicados nas formas fixas de influência italiana: sonetos e oitavas.
Unindo os decassílabos e as formas fixas clássicas a temas nobres, consegue o mais alto equilíbrio entre a disciplina, o virtuosismo formal e a reflexão profunda sobre o sentido do Amor e da Vida. Camões é poeta-filósofo; o que pensa e diz transcende em muita à mera confissão, ao simples desabafo, projetando-se como valores universais, atemporais, aplicáveis a qualquer contexto. O paradoxo do amor, a incerteza da vida e o desconcerto do mundo são os principais temas da lírica camoniana.

O AMOR: idéia e manifestação carnal, amalgamadas. No Amor-Idéia, é nítida a influência da poesia de Petrarca e Dante Alighieri. A mulher amada é retratada de forma idealizada, recorrendo o poeta a uma constante adjetivação, que descreve um ser superior, angelical, perfeito. No outro pólo, o do Amor-Sensível, carnal, Camões canta o Amor terreno, carnal-erótico, tendo como figura símbolo Vênus. Dessa duplicidade, brota o paradoxo do amor. O poeta percebe e defende, à luz da filosofia de Platão, que o Amor não deve apenas ser entendido, mas também experimentado.

O Amor como idéia (Poeta-pensador) X O Amor como manifestação carnal (poeta-homem,
Interagindo com o mundo)

* A impossibilidade de obter uma síntese dos dois “estágios” de Amor se revela na poesia camoniana, algumas vezes, pelo uso de antíteses.

As idéias platônicas em Camões

Mundo das Idéias (inteligível) – divinas essências (Bem, Belo, Sabedoria, Verdade, Justiça, Amor...)
Mundo Real (sensível) - reflexo, sombras imperfeitas das essências ideais.
* As realidades são apenas sombras/reflexos das essências. A arte é uma tentativa de conexão com o Sublime, tentativa de religamento com os deuses, reminiscências que o Humano traz do mundo ideal, da completude.
Amor platônico: o Amor, pleno e ideal, conjugação do espiritual com o carnal, tem efeito purificador (Ascese). Somo imperfeitos, jamais alcançaremos a plenitude do Mundo das Idéias, mas a Arte, o Amor, o Mito, as manifestações ritualísticas do Sagrado, a Filosofia nos fazem Ter a sensação de que estamos mais próximos do Ideal.

Texto II

Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho, logo, mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semidéia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim com a alma minha se conforma,

Está no pensamento como idéia;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples, busca a forma.

Vocabulário:
Liada: ligada, unida
Semidéia: feminino de semideus; semideusa.

Comentários:
* Caráter discursivo-conceitual – pretende comunicar-nos, por meio de uma estrutura argumentativa, antes um pensamento acerca do Amor e da Mulher, do que um sentimento sobre eles. Lírico-reflexivo, lírico-filosófico. O racionalismo é evidente na contenção emocional. A emoção e o sentimento são contidos nos limites do equilíbrio e da harmonia. O poeta atenua os impulsos do eu-lírico, de sua vida subjetiva particular, em favor de uma visão impessoal, objetiva e universal, que busca o Bem, a Beleza e a Verdade como valores absolutos.
* Os dois quartetos configuram a concepção platônica do Amor. O poeta idealiza e imagina tanto a amada, que já a tem em si mesma. O amor-amálgama. Vivo no ser que amo; faço viver em mim o ser amado. Aquele que ama se transforma no amado, de tanto idealizá-la; logo, não tem mais o que desejar, pois já tem em si mesmo a idéia do ser que deseja.
* Nos tercetos, a idéia platônica da Beleza e do Bem, que a amada desperta em seu espírito, converte-se como que numa matéria indefinida, que só se objetiva numa forma plena e feminina – Relações entre idéia (inteligível) e forma (sensível).
* Tentativa de síntese entre a teoria platônica da idéia e a doutrina aristotélica da forma. Para Aristóteles, a matéria é existência virtual (pura potência!), que só se realiza mediante as formas. Para Camões, o amor mental é tão somente matéria, virtualidade, vir-a-ser. E, para que o amor saia da mera virtualidade, tem de se realizar corporeamente.
* TRASNFORMA – FORMA: circularidade que nos devolve sempre a mesma pergunta, nunca respondida, numa espécie de moto-perpétuo, em que a transformação é sempre renovada, permanece sempre em essência, não só como insatisfação, não só como possibilidade, mas também como fatalidade que faz o poeta permanecer dentro do redemoinho da contingência humana.
* Este soneto é uma derivação imitativa de Petrarca “L’amante nell’amato si transforma”. A imitação que os clássicos praticavam dos modelos greco-latinos ou modernos, que pressupunha o empréstimo de temas e até versos inteiros, é procedimento comum, e nada tem de plágio. O poeta recriava o texto original, infundindo-lhe as marcas de sua genialidade, do “engenho e arte”.
* Quanto à métrica do soneto camoniano, os versos são decassílabos
Trans/ for/ ma/ se o a/ ma/ dor/ na/ cou/ sa a/ ma// da
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

As rimas obedecem ao esquema ABBA – ABBA – CDE – CDE (interpoladas ou opostas, nos quartetos; intercaladas ou alternadas, nos tercetos).

O DESCONCERTO DO MUNDO E A INSTABILIDADE DAS COISAS: a lírica reflexiva de Camões debruça-se com insistência sobre o desajuste do mundo, fruto de um destino confuso e irracional, da não correspondência entre os anseios, os valores, as razões e a realidade objetiva. É a área temática mais pré-barroca de Camões, abrangendo também os temas da mudança, da fugacidade do tempo e do fatal envelhecimento humano diante do constante renovar-se da natureza. O mundo racionalmente concebido da perspectiva renascentista abala-se diante da constatação de que certos sentimentos e destinos humanos não são previsíveis pela razão e pela lógica. Eis o anúncio do Barroco.

Texto III

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser; muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E, enfim, converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se a cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

Comentário:
* O poema parece retomar a Teoria do Devir, do pensador Heráclito: “O que é, enquanto é, não é, porque muda”, que reconhece como único estado de todas as coisas a mudança. Essa colocação, próxima do Barroco, do tema da incerteza e da inconstância da vida, e da contínua mudança de todas as coisas, é reforçada pelos jogos antitéticos: mal X bem; verde manto X neve fria; choro X doce canto.



Postado por Fabi às 6:56 AM
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Obras que serão trabalhadas (Fuvest e Unicamp):

O velho da horta - Gil Vicente (Unicamp)

Memórias de um Sargento de milícias - Manuel Antônio de Almeida (Fuvest)

O demônio familiar - José de Alencar (Unicamp)

O primo Basílio - Eça de Queirós (Fuvest)

Memórias póstumas de Brás Cubas - Machado de Assis (Fuvest)

A brasileira de Prazins - Camilo Castelo Branco (Unicamp)

Várias histórias - Machado de Assis (Unicamp)

Poesia completa de Alberto Caeiro - Fernando Pessoa (Fuvest)

Macunaíma - Mário de Andrade (Fuvest)

Libertinagem - Manuel Bandeira (Fuvest)

A hora da estrela - Clarice Lispector (Fuvest)

Sagarana - João Guimarães Rosa (Fuvest)

Brás, Bexiga e Barra Funda - Alcântara Machado (Unicamp)

Angústia - Graciliano Ramos (Unicamp)

Vestido de noiva - Nelson Rodrigues (Unicamp)

Manuelzão e Miguilim - Guimarães Rosa (Unicamp)

Os cus de Judas - Antonio Lobo Antunes (Unicamp)




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