:: quarta-feira, maio 19, 2004 ::
Semana 6
Tema: A poesia lírica de Camões: medida velha e medida nova
Poesia lírica: expressão artística das vivências emotivas de um eu manifesto ou implícito. Ao contrário da poesia épica, que se desenvolve na base da sucessão das ações e das intrigas, a poesia lírica busca exprimir a duração e os contornos de um processo emotivo.
Dados biográficos
Luís Vaz de Camões nasceu por volta de 1525; o local de nascimento também é impreciso, podendo ser Lisboa, Coimbra ou Santarém.
* 1547: parte para Ceuta (Marrocos), alistado como soldado, onde, em batalhas com os mouros, fica cego do olho direito.
* 1550: retorna à Corte portuguesa.
Apelidos: Trinca-fortes / Diabo Zarolho
* 1552: vai preso por ferir um funcionário do paço imperial, em uma briga. No ano seguinte, como aventureiro, toma parte em várias expedições para as colônias portuguesas. Refaz, nesse período, a rota de Vasco da Gama às Índias, que, alguns anos mais tarde, se converterá na ação central de Os Lusíadas.
* 1555: viagem a Goa
* 1558: Chegada em Macau, na China, para ocupar o cargo de Provedor-Mor de bens de defuntos e ausentes. Acusado de irregularidades, volta preso a Goa, para justificar-se. Durante a viagem, em 1559, naufraga às margens do Rio Mekong, no Camboja. Desse trágico episódio, surge a “lenda” envolvendo Os Lusíadas e a morte da amante chinesa de Camões, Dinamene. De fato, a moça morreu, mas o que não se sabe é se Camões salvou os rascunhos de sua obra em detrimento da jovem amada.
* 1567 – 1569: exílio em Moçambique;
* 1569: regressa, muito pobre, a Lisboa.
* 1572: publica Os Lusíadas.
* 1580: morre, após o desastre militar de Alcácer Quibir, em 1578, que fazia antever a anexação de Portugal aos domínios da Espanha. Sobre a morte que se aproximava, disse Camões a D. Francisco de Almeida: “Enfim, acabarei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado à minha pátria, que não me contentei em morrer nela, mas com ela”. Em 10 de junho de 1580, morreu, então, Camões, primeiro dos grandes poetas da Língua Portuguesa. Foi sepultado na Igreja de Santana, numa vala comum. Assim, os restos mortais que se encontram nos “Jerônimos”, para onde foram transferidos em 1880, têm apenas caráter simbólico.
O BÁSICO SOBRE LÍRICA CAMONIANA
* Platonismo amoroso;
* mulher idealizada + mulher real;
* Medida velha + medida nova;
* Antecipação barroca: antíteses e paradoxos;
* Estrutura silogística nos sonetos: discurso objetivo sobre os sentimentos e as questões filosóficas;
* Principais temas: o Amor, o Desconcerto do mundo, a mutabilidade das coisas;
* Conflito violento entre o ser e o dever ser.
As redondilhas de Camões – A medida velha
Poesia à maneira do Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende, composta de redondilhas maiores (7 sílabas) e menores (5). A temática destes versos é leve, brincalhona, madrigalesca; a situação amorosa é tratada de acordo com os parâmetros do amor cortês medieval; situações individualizadas. Destinava-se à recitação na Corte e revelaram a habilidade formal do poeta, talentoso em criar imagens, trocadilhos e ambigüidades em sua linguagem poética.
Texto I: “Perdigão perdeu a pena”
Mote alheio
Perdigão perdeu a pena
Não há mal que lhe não venha
Voltas
Perdigão, que o pensamento
Subiu a um alto lugar,
Perde a pena do voar,
Ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
Asas com que se sustenha:
Não há mal que lhe não venha...
Quis voar a uma alta torre,
Mas achou-se desasado,
E, vendo-se depenado,
De puro penado morre...
Se a queixumes se socorre,
Lança no fogo mais lenha:
Não há mal que lhe não venha!
Comentários: é notável neste vilancete o trabalho com a polissemia da palavra “pena” (jogo de palavras). Podemos destacar 3 significados que são trabalhados no poema e interligados na construção do sentido.
* pluma – Perdigão (animal)
* instrumento de escrita – perdigão (analogia com o poeta)
* piedade, compaixão, dó - sentimento despertado no “leitor”, ao saber da perda da pena (pluma) do Perdigão (animal), que, por conseqüência, perde a possibilidade de voar. Por analogia, está é a mesma coisa que acontece com o poeta. A pena (instrumento de escrita) simboliza o talento, a inspiração que, perdida, impossibilita o poeta de realizar sua atividade básica, a poesia.
A lírica clássica – A medida nova: as formas e os temas da lírica clássica
Influências: Petrarca e Dante Alighieri
Formas: versos decassílabos, aplicados nas formas fixas de influência italiana: sonetos e oitavas.
Unindo os decassílabos e as formas fixas clássicas a temas nobres, consegue o mais alto equilíbrio entre a disciplina, o virtuosismo formal e a reflexão profunda sobre o sentido do Amor e da Vida. Camões é poeta-filósofo; o que pensa e diz transcende em muita à mera confissão, ao simples desabafo, projetando-se como valores universais, atemporais, aplicáveis a qualquer contexto. O paradoxo do amor, a incerteza da vida e o desconcerto do mundo são os principais temas da lírica camoniana.
O AMOR: idéia e manifestação carnal, amalgamadas. No Amor-Idéia, é nítida a influência da poesia de Petrarca e Dante Alighieri. A mulher amada é retratada de forma idealizada, recorrendo o poeta a uma constante adjetivação, que descreve um ser superior, angelical, perfeito. No outro pólo, o do Amor-Sensível, carnal, Camões canta o Amor terreno, carnal-erótico, tendo como figura símbolo Vênus. Dessa duplicidade, brota o paradoxo do amor. O poeta percebe e defende, à luz da filosofia de Platão, que o Amor não deve apenas ser entendido, mas também experimentado.
O Amor como idéia (Poeta-pensador) X O Amor como manifestação carnal (poeta-homem,
Interagindo com o mundo)
* A impossibilidade de obter uma síntese dos dois “estágios” de Amor se revela na poesia camoniana, algumas vezes, pelo uso de antíteses.
As idéias platônicas em Camões
Mundo das Idéias (inteligível) – divinas essências (Bem, Belo, Sabedoria, Verdade, Justiça, Amor...)
Mundo Real (sensível) - reflexo, sombras imperfeitas das essências ideais.
* As realidades são apenas sombras/reflexos das essências. A arte é uma tentativa de conexão com o Sublime, tentativa de religamento com os deuses, reminiscências que o Humano traz do mundo ideal, da completude.
Amor platônico: o Amor, pleno e ideal, conjugação do espiritual com o carnal, tem efeito purificador (Ascese). Somo imperfeitos, jamais alcançaremos a plenitude do Mundo das Idéias, mas a Arte, o Amor, o Mito, as manifestações ritualísticas do Sagrado, a Filosofia nos fazem Ter a sensação de que estamos mais próximos do Ideal.
Texto II
Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho, logo, mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semidéia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim com a alma minha se conforma,
Está no pensamento como idéia;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples, busca a forma.
Vocabulário:
Liada: ligada, unida
Semidéia: feminino de semideus; semideusa.
Comentários:
* Caráter discursivo-conceitual – pretende comunicar-nos, por meio de uma estrutura argumentativa, antes um pensamento acerca do Amor e da Mulher, do que um sentimento sobre eles. Lírico-reflexivo, lírico-filosófico. O racionalismo é evidente na contenção emocional. A emoção e o sentimento são contidos nos limites do equilíbrio e da harmonia. O poeta atenua os impulsos do eu-lírico, de sua vida subjetiva particular, em favor de uma visão impessoal, objetiva e universal, que busca o Bem, a Beleza e a Verdade como valores absolutos.
* Os dois quartetos configuram a concepção platônica do Amor. O poeta idealiza e imagina tanto a amada, que já a tem em si mesma. O amor-amálgama. Vivo no ser que amo; faço viver em mim o ser amado. Aquele que ama se transforma no amado, de tanto idealizá-la; logo, não tem mais o que desejar, pois já tem em si mesmo a idéia do ser que deseja.
* Nos tercetos, a idéia platônica da Beleza e do Bem, que a amada desperta em seu espírito, converte-se como que numa matéria indefinida, que só se objetiva numa forma plena e feminina – Relações entre idéia (inteligível) e forma (sensível).
* Tentativa de síntese entre a teoria platônica da idéia e a doutrina aristotélica da forma. Para Aristóteles, a matéria é existência virtual (pura potência!), que só se realiza mediante as formas. Para Camões, o amor mental é tão somente matéria, virtualidade, vir-a-ser. E, para que o amor saia da mera virtualidade, tem de se realizar corporeamente.
* TRASNFORMA – FORMA: circularidade que nos devolve sempre a mesma pergunta, nunca respondida, numa espécie de moto-perpétuo, em que a transformação é sempre renovada, permanece sempre em essência, não só como insatisfação, não só como possibilidade, mas também como fatalidade que faz o poeta permanecer dentro do redemoinho da contingência humana.
* Este soneto é uma derivação imitativa de Petrarca “L’amante nell’amato si transforma”. A imitação que os clássicos praticavam dos modelos greco-latinos ou modernos, que pressupunha o empréstimo de temas e até versos inteiros, é procedimento comum, e nada tem de plágio. O poeta recriava o texto original, infundindo-lhe as marcas de sua genialidade, do “engenho e arte”.
* Quanto à métrica do soneto camoniano, os versos são decassílabos
Trans/ for/ ma/ se o a/ ma/ dor/ na/ cou/ sa a/ ma// da
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
As rimas obedecem ao esquema ABBA – ABBA – CDE – CDE (interpoladas ou opostas, nos quartetos; intercaladas ou alternadas, nos tercetos).
O DESCONCERTO DO MUNDO E A INSTABILIDADE DAS COISAS: a lírica reflexiva de Camões debruça-se com insistência sobre o desajuste do mundo, fruto de um destino confuso e irracional, da não correspondência entre os anseios, os valores, as razões e a realidade objetiva. É a área temática mais pré-barroca de Camões, abrangendo também os temas da mudança, da fugacidade do tempo e do fatal envelhecimento humano diante do constante renovar-se da natureza. O mundo racionalmente concebido da perspectiva renascentista abala-se diante da constatação de que certos sentimentos e destinos humanos não são previsíveis pela razão e pela lógica. Eis o anúncio do Barroco.
Texto III
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser; muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E, enfim, converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se a cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.
Comentário:
* O poema parece retomar a Teoria do Devir, do pensador Heráclito: “O que é, enquanto é, não é, porque muda”, que reconhece como único estado de todas as coisas a mudança. Essa colocação, próxima do Barroco, do tema da incerteza e da inconstância da vida, e da contínua mudança de todas as coisas, é reforçada pelos jogos antitéticos: mal X bem; verde manto X neve fria; choro X doce canto.
Postado por Fabi às 6:56 AM
Comentários
ou dúvidas:
:: terça-feira, abril 27, 2004 ::
Semana 5
Tema: Camões épico
I. Os Lusíadas – um épico na Renascença
Considerações gerais
Publicado em 1572, sob a proteção do Rei D. Sebastião, o poema épico Os Lusíadas tem como assunto central a viagem de Vasco da Gama às Índias (1497-1498). O navegador, mais que um herói individual, é o porta-voz e símbolo de toda a nacionalidade portuguesa, exaltando as conquistas ultramarinas, os novos reinos da Ásia, África e América, impregnado tanto dos ideais expansionistas da Monarquia Lusitana, como dos ideais de expansão da fé católica.
As perigosas viagens “por mares nunca dantes navegados”, o contato com povos e costumes diferentes e a exaltação do Homem-Integral (navegador, soldado, aventureiro, intelectual, cavaleiro e amante) encontram, na euforia antropocêntrica do Renascimento, um instante oportuno para o sentimento heróico e conquistador, não apenas dos portugueses, mas de toda a Europa quinhentista. Influenciado pelo clima intelectual favorável e pela leitura dos poetas épicos da Antigüidade clássica (Virgílio e Homero), contando com suas experiências pessoais, vivenciadas nas expedições marítimas das quais tomou parte, Camões realizou a maior epopéia portuguesa e renascentista.
A epopéia (ou poema épico) é um longo poema narrativo, de estilo elevado e assunto heróico, envolvendo grandes acontecimentos do passado. Trata de fatos notáveis, grandiosos, extraordinários de um povo, geralmente representado por um herói, permeado por seres míticos ou folclóricos. Grandes clássicos épicos: Homero – Ilíada e Odisséia (gregos); Virgílio – Eneida (romanos).
Obra de cunho enciclopédico, o poema narra, além da descoberta do caminho marítimo para as Índias, as grandes navegações portuguesas, a conquista do Império português do Oriente e toda a história de Portugal, seus reis, seus heróis e as batalhas que venceram. Paralelamente a essa dupla ação histórica (a viagem de Vasco da Gama e a história de Portugal), desenvolve-se uma importantíssima ação mitológica: a luta que travam os deuses olímpicos, contrapondo Vênus e Marte (favoráveis aos lusos) a Baco e Netuno (contrários às navegações).
Síntese das aspirações e realizações do homem português e renascentista, Os Lusíadas apresentam dicotomias que se fundem harmoniosamente, refletindo o espírito múltiplo da época:
* A mitologia pagã, de inspiração clássica, por meio das referências e analogias feitas com entidades e episódios mitológicas, e o ideal cristão de cruzada, já que Camões atribui aos descobrimentos também o significado de ampliação do mundo católico;
* O tom épico, na eloqüência da exaltação dos feitos dos navegadores, guerreiros e heróis, e o tom lírico, na expressão comovida do amor trágico de Inês de Castro;
* A objetividade, nas descrições da natureza, nos conhecimentos técnicos, históricos e geográficos, e a subjetividade nas digressões em que o poeta reflete sobre a vida, a natureza humana e sua própria condição;
* O ufanismo, o orgulho nacionalista de quem canta o valor de um povo que superou os heróis da Antigüidade, e o espírito crítico de quem pressente a decadência e adverte duramente seus contemporâneos;
* O espírito clássico, na assimilação dos modelos de Virgílio e Homero, na sintaxe latinizante, na cultura humanística, e os acentos maneiristas e antecipações barrocas, nas tensões características do barroquismo, na visão pessimista e desencantada e na tendência à deformação pelo exagero, à intensificação, além da inclusão de aspectos dolorosos, cruéis e horrendos, como a descrição dos navegadores devastados pelo escorbuto.
Estrutura formal
* Título: Camões foi buscar a palavra “Lusíadas” numa epístola escrita por André de Resende, em 1531. A palavra significa “os lusitanos” (os lusos, os portugueses).
* Cantos: o poema divide-se em 10 cantos – maior unidade de composição da epopéia. Cada um contém, em média, 110 estrofes. O canto III é o mais curto, com 87 estrofes; o canto X é o mais longo, com 156 estrofes.
* Estrofes: o poema é composto por 1102 estrofes, cada uma com 8 versos, as oitavas. A disposição das rimas obedece ao esquema ABABABCC (oitava-rima/oitava-real/oitava-heróica)
* Versos: 8816 versos, decassílabos (medida nova), predominando os decassílabos heróicos, 6 ª e a 10 ª sílabas tônicas, e alguns decassílabos sáficos, 4 ª, 8 ª e a 10 ª sílabas tônicas.
* As partes de Os Lusíadas: segundo a tradição clássica, a epopéia deve estar estruturada nas seguintes partes:
Proposição: é a apresentação do poema, com destaque para o tema e o herói. Estrofes 1 a 3, canto I. Nessa parte, evidenciam-se as seguintes características: o caráter coletivo do herói; a valorização do homem (antropocentrismo); a sobrevivência do “ideal de cruzada”; a valorização da Antigüidade clássica; o nacionalismo e a sintaxe rica e complexa, marcada pelos hipérbatos.
Invocação: é o pedido de inspiração às musas. Camões elege como suas inspiradoras as Tágides, ninfas do rio Tejo, “nacionalizando” suas musas. Estrofes 4 e 5, canto I.
Dedicatória: o poema é dedicado a D. Sebastião, rei de Portugal, figura mítico-histórico de Portugal. D. Sebastião era visto como a esperança de propagação da fé católica e continuação das grandes conquistas portuguesas por todo o mundo. Estrofes 6 a 18, canto I.
Narração: é a matéria do poema em si. Início in media res, ou seja, em plena ação. Entrecruzam-se 3 planos narrativos: o da viagem de Vasco da Gama às Índias, a narrativa da história de Portugal e a história dos deuses do Olimpo que, como forças do destino, tramam e destramam a sorte dos portugueses. São, portanto, duas ações históricas e uma ação mitológica que se alternam e se interpenetram no poema. A narrativa começa já no meio da aventura do herói, quando Vasco da Gama e os navegadores estão em pleno Oceano Índico, na Costa Leste da África, próximo do Canal de Moçambique. Os acontecimentos anteriores são relatados por discursos dos protagonistas humanos (Vasco da Gama e seu irmão Paulo da Gama), e os acontecimentos futuros são anunciados por deuses. Os episódios anteriores da navegação (a partida das naus, a travessia do Equador, a passagem pelo Cabo das Tormentas na África do Sul) são narrados pelo próprio capitão, ao rei de Melinde, durante uma pausa na viagem. Mais tarde, já na Índia, em Calicute, Paulo da Gama, segundo herói da viagem, irá acrescentar outras personagens e outros episódios históricos. Não episódio da “Ilha dos Amores”, onde Vênus recepciona os navegadores, após os sucessos na Índia, os planos histórico e mitológico fundem-se; os heróis entretêm-se com as ninfas, Vasco da Gama torna-se amante de Tétis. Após um banquete oferecido por Tétis e pelas ninfas, uma delas, Sirena, anuncia as futuras conquistas portuguesas. Tétis conduz Vasco da Gama a uma elevação e mostra a ele a Máquina do Mundo, réplica em miniatura do sistema solar, segundo a teoria geocêntrica de Ptolomeu, e que somente os deuses podiam contemplar. Descobrindo a orbe terrestre, Tétis aponta os lugares onde os portugueses ainda se farão presentes. Sem que se dê muita ênfase, fala-se do Descobrimento do Brasil. Estrofe 19 do Canto I até estrofe 144 do canto X.
Epílogo: grande lamento do poeta, que reclama o fato de sua “voz rouca” não ser ouvida com mais atenção. Contrastando com o tom vibrante e ufanista do início, o tom é agora de pessimismo, desencanto e de crítica à decadência do país e aos portugueses de seu tempo, cegos pela ganância. É uma clara premonição da derrocada de Portugal, submetido em 1580 ao domínio espanhol. Há, ainda, o sentido de desabafo de Camões, que se queixa da incompreensão e das privações pelas quais parece ter passado em seus últimos anos de vida. Estrofes 145 a 156, canto X.
II. Os episódios: “Inês de Castro” e “O Velho do Restelo” – lírica e crítica
A. Inês de Castro (canto III, estrofes 118 a 135)
De origem galega, Inês Pires de Castro tinha origem nobre, aliada aos castelhanos. Suas relações com o Príncipe D. Pedro, primogênito de D. Afonso IV, futuro D. Pedro I, eram malvistas pela corte portuguesa por três motivos: o príncipe era casado com D. Constança e tinha filho legítimo com a rainha; Inês era socialmente inferior; o relacionamento dos dois representava uma ameaça à soberania portuguesa, era uma possibilidade de a Espanha retomar o poder em Portugal, uma vez que os dois tinham 3 filhos, herdeiros, mesmo bastardos, em potencial. Quando Pedro enviuvou, impuseram diversas noivas; ele se nega, alegando estar casado com Inês. O rei, D. Afonso IV, a corte e o povo em geral temem que os filhos bastardos venham a assumir o trono, anexando Portugal à Espanha. Parecem ter sido essas as razões políticas que levaram a corte portuguesa a julgar e condenar à morte Inês de Castro, aproveitando a ausência do príncipe, que fora combater na África. Os nobres, com o respaldo de D. Afonso, assassinaram Inês por razões de Estado. Pedro, ao regressar da África e descobrir a atrocidade cometida, desenterra Inês, realiza a cerimônia de coroação com o cadáver, obrigando, inclusive, os súditos a beijarem sua mão. Foi realizado, então, um enterro digno de rainha. Assumindo o trono, D. Pedro I dedicou-se perversamente à vingança contra todos os algozes de Inês, com requintes de sadismo.
Fernão Lopes, Garcia de Resende e Antonio Ferreira já haviam explorado, em prosa, em verso e no teatro, respectivamente, o episódio histórico. Camões aborda o episódio com uma carga máxima de lirismo, para simbolizar a força e a veemência do Amor, sentido bastante trabalhado em sua lírica de maneira geral. A beleza poética desse episódio vem do fato de Camões atribuir a morte de Inês de Castro à circunstância de ela amar extremadamente, nutrindo um amor que não cabia neste mundo. Evidencia-se o caráter transcendente e imortal do Amor também muito presente na lírica camoniana. A infelicidade e a morte são vistas como conseqüências do sentimento arrebatador, sufocado pelas condições sociais que o impossibilitavam de se concretizar plenamente. O sacrifício de Amor dá ao amante a sublimação dos sofrimentos terrenos. Por meio dessa interpretação, Camões dá ao episódio histórico uma versão mais rica e sugestiva, indo bastante além da intriga palaciana que tirou a vida da amante espanhola do futuro rei D. Pedro I.
B. O Velho do Restelo (canto IV, estrofes 90 a 104)
Quando as naus de Vasco da Gama se despediam de Portugal, um ancião, o Velho do Restelo, elevando a voz, manifestou sua oposição à viagem às Índias. Ressalta-se, nesse episódio, também, a imensa dor de mães e esposas que supõem que seus filhos e maridos não retornariam da viagem; fato que se comprova pelo seguinte dado: dos 170 homens que deixaram o cais do Restelo, apenas 55 retornaram vivos.
São freqüentes duas interpretações para esse episódio. A fala do Velho do Restelo pode ser interpretada, inicialmente, como a sobrevivência da mentalidade feudal, agrária, medieval, oposta ao expansionismo e às navegações, que configuravam os interesses da burguesia e da monarquia. Seria, nesse sentido, a expressão máxima do conservadorismo.
No entanto, se estabelecermos uma relação entre esse episódio e o conteúdo do epílogo, podemos considerar que se encontra nesta correspondência temática uma nota dissonante dentro de um gênero marcado pela exaltação patriótica e heróica. Trata-se de identificar a voz do poeta que soube reconhecer o relaxamento moral do povo português, o qual se teria deixado inebriar pelo poder e riqueza alcançados com a expansão ultramarina. Nesse sentido, a fala do Velho do Restelo reveste-se de sensatez por condenar a aventura de Vasco da Gama, que colocava em risco vidas que dificilmente seriam beneficiadas com os lucros das navegações.
É possível traçar um paralelo, também, com um dos elementos mais fortes das tragédias: o coro. Ao amaldiçoar o primeiro a construir um navio, o Velho do Restelo ganha uma dimensão poética e pode ser percebido como uma recuperação do coro das tragédias gregas, no seu papel de profetizar as conseqüências funestas de certos atos humanos. A evocação de malogradas aventuras mitológicas – Prometeu, Faetonte, Dédalo e Ícaro – sugere haver semelhança entre esses atos ditados pela ambição e pela vaidade e as empreitadas portuguesas.
Portanto, em Os Lusíadas, ao lado da exaltação patriótica necessária ao gênero épico, encontra-se a relativização crítica dos grandes feitos portugueses e suas verdadeiras motivações. Nesta obra, Camões desmascara a ideologia oficial, o “espírito de cruzada”, revelando a “glória de mandar” e a “vã cobiça” que animavam os portugueses às grandes navegações.
III. Intertextualidade
FALA DO VELHO DO RESTELO AO ASTRONAUTA
José Saramago
In: Poemas possíveis (1966)
Aqui na terra a fome continua
A miséria e o luto
A miséria e o luto e outra vez a fome
Acendemos cigarros em fogos de napalm
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
Ou talvez da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti nem eu sei que desejos
De mais alto que nós, de melhor e mais puro.
No jornal soletramos de olhos tensos
Maravilhas de espaço e de vertigem.
Salgados oceanos que circundam
Ilhas mortas de sede onde não chove.
Mas a terra, astronauta, é boa mesa
(e as bombas de napalm são brinquedos)
onde come brincando só a fome
Só a fome, astronauta, só a fome.
MAR PORTUGUÊS
Fernando Pessoa
In: Mensagem (1934)
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Postado por Fabi às 3:30 PM
Comentários
ou dúvidas:
Obras que serão trabalhadas (Fuvest e Unicamp): O velho
da horta - Gil Vicente (Unicamp) |
Textos Anteriores:
|
Contato: fabi.prof@hellokitty.com |